Texto: Carlos Fioravanti/Revista Pesquisa Fapesp
Em agosto de 2021, para avaliar os métodos de produção artesanal de tiquira, aguardente fermentada e destilada feita a partir da mandioca, típica do Maranhão, o físico Rafael Almeida, do Instituto Federal do Maranhão (IFMA), visitou a cooperativa dos produtores no município de Urbano Santos, a 260 quilômetros da capital do estado. Assim que entrou na sala de fermentação, sentiu um cheiro de ácido acético, o principal componente do vinagre, forte a ponto de fazer seus olhos lacrimejarem. Para ele, era um sinal claro de que havia passado o tempo de encerrar a fermentação e o álcool se degradava em compostos indesejados.
Entre alguns produtores de outros oito municípios maranhenses, as condições de produção e higiene eram similares – ou rústicas, como ele definiu. A partir dessas observações, Almeida esboçou um plano: reunir-se assim que possível com os produtores com quem conversou para apresentar-lhes o diagnóstico e as possibilidades de aprimoramento dos métodos de produção, elaborados com Jaqueline Silva Nascimento, que fez o mestrado orientada por ele.
Graduada em turismo, ela examinou a possibilidade de os produtores obterem o registro de Indicação Geográfica, concedido pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) para produtos que refletem culturas ou modos de produção específicos. Os resultados de sua pesquisa foram publicados em julho na revista Cadernos de Prospecção.
“É possível melhorar os processos de produção com ajustes simples. Por exemplo, lavando o alambique com uma solução de suco de limão para reduzir o risco de contaminação por cobre”, observa Almeida. Outra sugestão é a instalação de equipamentos para a verificação do teor de álcool e outros componentes da bebida, criada por povos indígenas e chamada inicialmente cauim, que começou a ser destilada somente com a chegada dos colonizadores europeus.
Diferentemente da aguardente de cana-de-açúcar, elaborado com uma única espécie de levedura (Saccharomyces cerevisiae), a tiquira resulta da fermentação – a transformação das moléculas de glicose do amido da mandioca em álcool –por fungos e leveduras nativos, que crescem sobre a massa seca de mandioca (ver abaixo). A diversidade de linhagens dos agentes responsáveis pela fermentação pode causar a perda parcial ou total da produção e modificar as características da bebida.
O químico do IFMA Francisco Albuquerque Bastos coletou, isolou e cultivou amostras do fungo Aspergillus niger, usado para produzir tiquira em alambiques de Urbano Santos. Em seu mestrado, concluído em 2013 na Universidade Federal do Maranhão (UFMA), ele usou-as para produzir a bebida, controlando a temperatura, a acidez e as proporções entre os ingredientes. Como resultado, reduziu o tempo de produção para 136 horas (quase seis dias), bem menos que os 20 dias do método artesanal, com teor alcoólico de 38,2%, dentro do permitido pela legislação, de 36% a 54% (o da cachaça varia de 38% a 48% e o da vodca de 36% a 54%). O ciclo poderia ser encurtado ainda mais, para 25 horas, com enzimas especializadas para transformar a glicose em álcool, resultando em um líquido transparente com 40,2% de teor alcoólico. Bastos também visitou os produtores em 2021 e 2022, com Almeida ou Nascimento.
Em seu mestrado na Universidade de Brasília (UnB), Igor Albuquerque de Souza, graduado em farmácia, usou o fungo Aspergillus oryzae – a mesma espécie utilizada há séculos para produzir saquê no Japão a partir do arroz –, para fermentar a mandioca. O processo, como o de Bastos, também durou de cinco a sete dias, com teor de álcool no limite do permitido (54%). Mas ainda havia problemas a serem resolvidos, como o teor de metanol, um tipo de álcool indesejável, que se concentra no início da destilação e estava acima do permitido pela legislação, como detalhado em um artigo de agosto de 2016 na Journal of Agricultural Science.
“Em nossa produção predomina o fungo Aspergillus”, observa o engenheiro- agrônomo João Paulo Rodrigues da Silva, responsável técnico da Cooperativa dos Produtores de Tiquira e Agricultores Familiares de Guaribas de Urbano Santos (Cooptaf Guaribas). A tiquira é produzida em um prédio construído com apoio da prefeitura de Urbano Santos, em funcionamento desde 2016, e está registrado no Ministério da Agricultura desde abril de 2022.
Silva concluiu que várias espécies de Aspergillus podem participar da fermentação da tiquira, porque varia do amarelo ao marrom a cor do mofo nos beijus, discos feitos de massa de mandioca desidratada e assada; o líquido resultante da prensagem da mandioca, por causa da alta concentração de ácido cianídrico, é descartado. Os fungos do ar atacam os beijus e crescem na sala de fermentação durante três a cinco dias, cobrindo-os com cores diferentes.
Mas os resultados são incertos: “Às vezes, como não sabemos exatamente a espécie de fungo que está fermentando a mandioca, fazemos tudo e não sai nada”, ele comenta. Nesses casos, todo o material é descartado e o trabalho de duas semanas perdido.
Situações como essa mostram a necessidade da identificação e isolamento dos fungos. Os pesquisadores sugerem, por exemplo, que os produtores reservem, após cada destilação bem-sucedida, a massa de fungos do fundo das dornas de destilação e a reaproveitem na destilação seguinte – e do controle mais preciso das condições de produção, como a temperatura, o tempo e as proporções entre os ingredientes.
A quantidade de beijus fornecidos pelos sócios da cooperativa varia, porque muitos preferem eles mesmos fazerem a tiquira e vender no comércio local. “Aumentou muito a produção de mandioca e a procura pela tiquira”, observa Silva. A bebida também é produzida no Maranhão com enzimas industriais. O preço da garrafa de 700 mililitros varia de R$ 15, diretamente do produtor, a R$ 180 reais, em empórios on-line.
O biólogo José Guilherme Prado Martin, da Universidade Federal de Viçosa (UFV), valoriza a rusticidade da produção artesanal, já que a diversidade de fungos poderia enriquecer os sabores e os aromas, como nos queijos. Mas faz um alerta importante: “Na produção de bebidas artesanais, quanto maior a exposição a ambientes abertos, maior o risco de contaminação”.
Coautor de um artigo sobre a produção de comidas e bebidas fermentadas no Brasil publicado em setembro de 2022 na Journal of Ethnic Foods, Martin comenta que os fungos estão associados a toxinas, mas eles só as produzem em condições específicas de acidez, umidade, temperatura ou de competição com outros organismos.
Bebida já era conhecida dos povos nativos
Receitas e fungos usados na produção da tiquira variam desde o século XVII
Descritas por viajantes desde o século XVII, as bebidas fermentadas de amido do norte do Brasil estavam associadas a um único modo de produção: o acréscimo da saliva, que contém amilase, à massa da mandioca mastigada pelos povos nativos e depois deixada em um recipiente para fermentar. Amilase é uma enzima que decompõe o amido.
Em 1994, o botânico norte-americano Terry Henkel, da Universidade Estadual de Humboldt, nos Estados Unidos, percorreu as aldeias dos povos Wai Wai e Wapisiana na Guiana e identificou outro método. Como detalhado em um artigo publicado em março de 2004 na Economic Botany, os indígenas cobriam a massa de mandioca com folhas de pau-pólvora (Trema micrantha), sobre as quais cresciam fungos do gênero Rhizopus, também aptos a digerir o amido; depois de alguns dias as folhas com o bolor branco eram trituradas e acrescentadas à massa.
O ecólogo italiano Alessandro Barghini circulou mais nas terras indígenas. Entre os anos 1970 e 2010, como consultor de projetos de eletrificação rural, ele conta que conheceu os Ticuna, Yanomami, Macuxi e outros grupos da Amazônia. “Os visitantes tinham de tomar os fermentados para serem aceitos”, conta. Uma das bebidas produzidas geralmente com saliva era o tarubá, leitoso – não fermentado e depois destilado, como a tiquira – ainda produzido no Maranhão, Alagoas e Piauí.
“As bebidas produzidas com fermentos locais poderiam levar os aromas e sabores da Amazônia para outras regiões”, sugere Barghini. “Precisamos valorizar o conhecimento tradicional.” Em um artigo publicado em novembro de 2022 no Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi – Ciências Humanas, ele relata ter encontrado 43 receitas de fermentação de mandioca para a produção de tiquira e tarubá – as primeiras descrições são de 1667, de jesuítas. Os povos que produzem as bebidas hoje encontram-se na Nicarágua e norte da América do Sul (Colômbia, Venezuela, Guianas, Suriname, Equador, Peru e Brasil). Os fungos identificados são A. niger e A. oryzae, Neurospora crassa e N. sitophila, Paecilomyces sp. e Penicillium porpurogenum, além de Rhizopus.
“Esses estudos trazem perspectivas interessantes sobre o estudo da alimentação indígena”, comenta o arqueólogo Eduardo Góes Neves, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP). “Sei de grupos que ainda fazem caxiri e caiçuma [outras bebidas fermentadas, mas não destiladas, à base de mandioca] ou chicha [com milho], como os Tikuna no alto Solimões, os Macuxi em Roraima, os Palikur no Oiapoque e os Tupari em Rondônia. Os ingredientes mudam, mas o princípio é o mesmo.”
Artigos científicos
ALMEIDA, R. M. et al. Aguardente de mandioca tiquira: Um potencial de Indicação Geográfica para o estado do Maranhão. Cadernos de Prospecção. v. 16, n. 5, p. 1728-41. 1° jul. 2023.
BARGHINI, A. Novos dados sobre a fermentação amilolítica na Amazônia. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi – Ciências Humanas. v. 17, n. 2. 14 nov. 2022.
HENKEL, T. W. Manufacturing procedures and microbiological aspects of Parakari, a novel fermented beverage of the wapisiana amerindians of Guyana. Economic Botany. v. 58, p. 25-37. mar. 2004.
LIMA, T. T. M. et al. Traditional Brazilian fermented foods: Cultural and technological aspects. Journal of Ethnic Foods. v. 9, 35, p. 1-15. 2 set. 2022.
SOUZA, I. de et al. Cassava biomass transformation by Aspergillus oryzae. Journal of Agricultural Science. v. 8, p. 37. ago. 2016.